Canção da manhã feliz
“De repente em minha vida
já tão fria e sem desejos
estes festejos
esta emoção…”
(Haroldo Barbosa e Luiz Reis)
Eu sentia-me exatamente assim. Semimorto. Um autômato. Quase um vegetal. Há exatos cinco anos. E o simples fato dessa memória da data, o simples uso da palavra “exatos” para contar os anos e pontuar a dor de meia década é capaz de deixar bem nítido o tamanho do rasgo na minha alma ou no que um dia pude chamar de alma (pude, não… no que um dia chamaram de alma por mim).
A dor do abandono deve doer. Eu digo deve doer porque o que me vitimou não foi abandono. Foi nem sei dizer o quê. Aquela vaca confessa numa manhã de sábado de carnaval que está saindo de casa e justo por causa daquele a quem eu considerava um grande amigo. “Vamos pra Paris”, foi só o que ela disse já de pé no centro da sala, duas malas enormes a seu lado, e nem um beijo, nem um abraço, nada.
E pior que isso.
Nem sinal de nada. Foi assim, de uma hora pra outra. Claro que de uma hora pra outra segundo a minha visão. “Estamos juntos há seis anos”, isso foi dito assim, fria e pausadamente, para responder meu monocórdio “desde quando?”.
Mas ontem, sei lá o que me deu, depois de exatos cinco anos (uso o exato de novo e percebo a cicatriz fechando), contratei a Leila (escolhi pelo nome, o mesmo), a quem encontrei numa dessas agências de acompanhantes (que é como as putas se denominam pela internet). Minha única exigência: dormir comigo.
Paguei o triplo do valor que me fora dito pela telefonista, educadíssima (como estão refinados os puteiros, os bordéis, os lupanares). “Dormindo fica mais caro”.
Não me importava.
Eu queria acordar dizendo “Leila, bom dia” novamente.
Mas ao acordar, vendo a Leila ali, dezoito anos (isso foi o que ela me disse, não tem mais de dezesseis), em posição fetal, nua, os pezinhos enroscados, uma manhã luminosa arrebentando a veneziana e frisando de luz o colchão, senti uma emoção que já desconhecia.
Os quarenta anos que nos separavam não tinham a menor importância.
E enquanto fotografava Leila, com um nó na garganta, um calor no peito e um tremor indisfarçável nas mãos, notei que só estava dizendo “exatos cinco anos” porque não havia me permitido, minimamente que fosse, uma oportunidade mínima de um esboço de emoção.
Quando eu disse a ela, assim que fez a primeira preguiça, “Vou tirá-la dessa vida, minha querida…”, ela gargalhou, perguntou por torradas e café bem forte. Acendeu um cigarro e disse brincando com a fumaça:
– Todos dizem isso.
Eduardo Goldenberg. Extraído de https://butecodoedu.wordpress.com
X.X.X.X.X.X.X.X.X
Particularmente, o vozeirão suave cheio de “sambalanço” de Miltinho imperou nas paradas dos anos 1960 com sucessos alegres/tristes e outros sambas quase sempre suingados. “Luminosa manhã/ por que tanta luz?/ dá-me um pouco de céu/ mas não tanto azul”, pedia a “Canção da manhã feliz” (1962) (de uma dupla de compositores constante em seu repertório, Haroldo Barbosa e Luiz Reis), indecisa e choramingosa entre o muito e o pouco (ouça adiante!).
Extraído de http://www.revistaforum.com.br
Miltinho(1962)
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