Disseram que eu voltei americanizada
Já famosa nos Estados Unidos, Carmen Miranda chegou ao Brasil em julho de 1940 para passar três meses por aqui. Foi recebida no Cassino da Urca com frieza, como tivesse se afastado de suas origens. A decepção a levaria a decidir nunca mais se apresentar em palcos brasileiros. Um dos sambas que gravou na época foi uma resposta ao que passou: “Disseram que eu voltei americanizada”, de Vicente Paiva e Luiz Peixoto (ouça adiante!). É o escritor/jornalista João Máximo que relata o ocorrido.
A propósito de “Brasil pandeiro” já falamos das férias que Carmen Miranda passou no Rio de Janeiro de julho a outubro de 1940, depois das quais retornaria aos Estados Unidos para prosseguir com sua vitoriosa carreira no teatro e no cinema.
Depois do primeiro ano lá, Carmen desembarcara no Brasil para menos de três meses de férias. Foi a época que a plateia do Cassino da Urca recebeu-a friamente. A maioria por vê-la menos como a Pequena Notável de antes do que como a “Brazilian Bombshell” que arrebatava o público americano.
A decepção de Carmen foi imensa. Causou não só a redução de suas férias por aqui como também a decisão de nunca mais se apresentar no Brasil, depois que voltasse para a Broadway e Hollywood.
No Rio, Carmen, gravou apenas quatro sambas, todos na Odeon. Um deles em 2 de setembro de 1940 é o sugestivo “Disseram que eu voltei americanizada”, dedicado a fria plateia da Urca. Os autores, dois velhos amigos de Carmen. Responsável pela música, Vivente Paiva já contribuíra para o repertório da cantora com sambas como, “Voltei pro morro” e “Diz que tem”. A letra era do grande Luiz Peixoto, de “Na batucada da vida” e “E quando eu peso na Bahia”, ambos do onipresente Ary Barroso e mais a já citada “Voltei pro morro” do maestro Vicente Paiva.
Bem humorado e como se diz, sugestivo, “Dizem que eu voltei americanizada” fica como réplica e desabafo de despedida de uma Carmen Miranda que nunca mais cantaria no Brasil.
Extraído de http://blogln.ning.com
Carmen Miranda & Conjunto Odeon(1940)
X.X.X.X.X
1940 Silêncio na Urca
César Ladeira subiu ao palco e, com seu verbo emplumado, narrou com ares épicos as façanhas de Carmen em Nova York – muitas, presenciadas por ele. Em resumo, o que César tinha a dizer era: a “Pequena Notável” vencera no meio musical mais exigente do mundo, na maior cidade do mundo, no país mais poderoso do mundo. E não bastava louvar Carmen. Por qualquer ângulo que fosse analisado, o speech de César era uma subliminar louvação aos Estados Unidos. E nem todos ali estavam gostando daquilo. Sob sua voz, vindo das mesas de pista, podia-se ouvir um rumor de sabres.
Enquanto César falava, Carmen, na coxia, estava nervosa. Natural. Era a rentrée para o seu povo, em sua cidade, em seu país. César encerrou chamando Carmen, e as palmas que se ouviram destinavam-se a receber a artista, não a aplaudir o locutor. A orquestra de Machado, já a toda, assomou do subsolo pelo elevador. Um segundo antes de entrar, Carmen benzeu-se e apertou distraidamente o braço de uma cantorinha que participara de um número anterior e que estava ali para espiá-la. Sem saber o que fazia, Carmen cravou as longas unhas no braço nu da menina – Emilinha Borba -, que espremeu baixinho um grito de “Aaaaiii!…”.
Com a mesma baiana que usara na Casa Branca, de brocados dourados, vermelhos e prateados, Carmen finalmente entrou sob os aplausos. A cestinha de frutas crescera para os lados e para o alto; uma catarata de colares e balangandãs tinha se incorporado à fantasia; e a gesticulação também parecia diferente. Para a plateia, aquela era uma nova Carmen – e mais ainda porque “Serenata tropical” ainda não estreara por aqui. (Aliás, não estreara nem nos Estados Unidos. A “nova” Carmen ainda era um segredo dos night clubs de Nova York a Chicago).
Carmen dirigiu-se em inglês à plateia: “Good night, people!” – em vez do tradicional (e muito mais ela) “Oi, macacada!”.
Não houve grande resposta.
Carmen abriu com “South American way”. Pelos três minutos seguintes, gelo na plateia. O samba-rumba, muito fraco para os padrões brasileiros, teve de arrastar-se sozinho até a última nota. O verso “Souse American way”, que, nos Estados Unidos, fazia a plateia ter convulsões de riso, passou em branco na Urca até pelos que entenderam o trocadilho. Ao fim do número, não houve vaia, mas aplausos tíbios e espaçados. E, mais que tudo, silêncio – um silêncio cheio de sons de desconforto: resmungos em surdina, bufadas involuntárias, corpos se ajeitando nas cadeiras.
Em retrospecto, não faltariam motivos para justificar a trágica passagem de Carmen pelo Cassino da Urca naquela noite. Alguns deles: fazia um ano que Carmen estava sem ouvir música brasileira, exceto a que ela própria cantava. Estava também condicionada à reação das plateias americanas, que não entendiam o que ela dizia, obrigando-a a enfatizar seus movimentos de palco. E havia o resfriado: sem muita voz ou ritmo, ela parecia sumir, sucumbir, ao peso da orquestra de Carlos Machado.
O que Carmen cantou nessa noite, além de “South American way”? Apenas mais três músicas, embora não haja consenso sobre quais foram. Uma delas, segundo Carlos Machado, teria sido algo cubano (Machado falou em “El cumbanchero”, mas esta só seria composta pelo porto-riquenho Rafael Hernández em 1943). Outra, segundo Aloysio de Oliveira, seria uma canção americana com letra em português por ele próprio – talvez “Diga diga doo”, que o “Bando da Lua” cantava no passado e, por acaso, também de Jimmy McHugh (em parceria com Dorothy Fields). E, por último e por certo, “O que é que a baiana tem?” – mas, aí, o desastre já se consumara. Em Nova York, quando se apresentava no Waldorf ou no Versailles e uma mesa lhe pedia que cantasse algo em inglês, Carmen respondia: “I sing the songs from Brazil” (Eu canto as coisas do Brasil). E, logo aqui, vinha dar um fora desse tamanho! Não sabia para quem estava cantando?
Não. E nem podia saber. Aqui vai a composição de mesas no Cassino da Urca, pelo menos nas primeiras filas, naquela noite – Carmen cantou para nada menos que o estado-maior do Estado Novo. Presentes, além da primeira dama, dona Darcy Vargas, estavam sua filha Alzirinha e o marido desta, Ernani do Amaral Peixoto, interventor do estado do Rio; general Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra; general Góes Monteiro, chefe do Estado-maior do Exército; Francisco Campos, ministro da Justiça; Waldemar Cromwell Falcão, ministro do Trabalho; Gustavo Capanema, ministro da Educação; vice-almirante Aristides Guilhem, ministro da Marinha; coronel Cordeiro de Faria, interventor do Rio Grande do Sul; capitão Filinto Müller, chefe de polícia do Distrito Federal; capitão Batista Teixeira, do Departamento de Segurança Política e Social; “coronel” Bejo Vargas, bon-vivant, lobista e primeiro-irmão; Lourival Fontes, chefe do DIP; Júlio Barata, diretor da Divisão de Rádio do DIP; Assis Figueiredo, diretor da Divisão de Turismo do DIP; e o radialista Felicio Mastrangelo, italiano nato e mais tarde acusado de quinta-coluna no Brasil por vários jornalistas – apenas entre os que foi possível levantar. Cada qual com grande comitiva.
À volta deles, empresários e industriais brasileiros, muitos com sobrenomes bem conhecidos, e que, a exemplo da elite de outros países, estavam fazendo negócios com a Alemanha do Führer e se identificando com sua postura anticomunista e anti judaica.
A debutante Stella Rudge, acompanhada de suas amigas, era fã de Carmen e queria aplaudi-la, mas, desde o primeiro número, sentiu a temperatura à sua volta e se conteve. Suas amigas também olharam ao redor e recolheram as mãozinhas. Alice Accioly, mulher do jornalista Accioly Netto, não entendia a mudez da plateia – o som das poucas palmas no vazio era terrível. Alice, que conhecia todo mundo por causa do marido, notou a presença de muita gente do governo. E Maria Sampaio se mortificava por não ter impedido Carmen de subir ao palco com aquele resfriado.
É impossível saber o que se passou na cabeça de Carmen ao atacar cada música e constatar que não estava agradando – ou que forças a fizeram chegar ao quarto número. Ao fim deste, não se conteve e saiu do palco, revoltada e chorando. Machado continuou o show e, por alguns minutos, ninguém entendeu o que estava acontecendo. Carmen voltaria ou não? Quando correu pelo grill a informação de que ela não voltaria, Alzirinha, em nome de sua mãe, foi ao camarim para ver o que havia e para convidá-la a se sentar a sua mesa. Mas Carmen mandou agradecer e disse que ia para casa porque não estava bem.
No dia seguinte, comentaria com Caribe da Rocha: “O público que foi ao cassino não foi o mesmo que me recebeu nas ruas.” Não foi mesmo, até pelo preço do convite: dez vezes o de um ingresso normal da Urca. Os que correram atrás de seu carro na avenida Beira-Mar, gritando “Carmen!”, não tinham nem para o aluguel de um smoking. No futuro, dir-se-ia que a “elite” brasileira a rejeitara por ser sambista.
Não foi nada disso – pois, afinal, eles não a criticaram por voltar “pouco autêntica” e “americanizada”? E é aí que está a chave do silêncio.
Quem estava em todas as principais mesas da Urca, naquela noite, era o poder, oficial e civil, que, nos últimos meses, assumira uma nova cor política ao sabor dos acontecimentos na Europa. A Alemanha era agora a grande amiga, e os Estados Unidos, de repente, o potencial vilão. Os ministros e funcionários do governo se irritaram ao ver que a artista que emigrara com o apoio deles, para fazer valer o Brasil e sua música junto ao inimigo, voltara corrompida por esse inimigo. As bandeiras no palco e no grill da Urca deviam ter servido de aviso. Normalmente, elas poderiam ser interpretadas como o Brasil que recebia Carmen de volta. Mas o Estado Novo conspurcara o símbolo da bandeira – naquele contexto, elas significavam apenas o regime recebendo Carmen.
O “nacionalismo” da elite brasileira também era de araque. Poucos dias antes, Caribe protestava em sua coluna no “Correio da Noite” contra o enxame de foxes, blues, boleros e rumbas, em detrimento do samba, no repertório das orquestras dos cassinos – embora houvesse uma lei (passada por Getúlio) obrigando essas orquestras a ter 50% de música brasileira em seu repertório. Quem impunha esse repertório estrangeiro? Caribe falava também da decepção dos turistas, que vinham aqui para ouvir samba, e não os seus próprios ritmos, e denunciava que essas orquestras não tinham entre os seus membros um único tocador de cuíca ou tamborim. A de Carlos Machado, que, por sinal, se chamava “Brazilian Serenaders”, não tinha esse músico – na verdade, era uma autêntica big band de swing, temperada com, às vezes, uma percussão cubana. Ou seja, não seria por falta de traquejo internacional que a plateia dos cassinos desaprovaria o repertório de Carmen. Era só uma questão de momento.
Carmen nunca entendeu isso e ninguém lhe explicou o contexto em que se dera a agressão. Por esse motivo, convenceu-se de vez que a “elite” brasileira não gostava dela. E que tudo que fizera para deixar de ser a filha do barbeiro e da lavadeira, e ser aceita por “eles”, fora em vão.
Fonte: Castro, Ruy, “Carmen, Uma biografia”, p.248-251, Companhia das Letras: São Paulo, 2005.
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