Expresso 2222
Começou a circular o Expresso 2222 da Central do Brasil
Que parte direto de Bonsucesso pra depois do ano dois mil…
A canção já passa dos 40 anos de lançamento – e nada perdeu de seu vigor criativo e do horizonte de emoções que vai trilhando, ligando pontos e polos dispersos e encantados.
É uma canção que trata de encantamento – e de como isso se entrelaça e se confunde com a própria vida, de como mexe e remexe com jeito de trem nordestino, ah sim, tanta coisa depende da cinética nessa canção…
Lá nos 70, a canção tecia um discurso político de afirmação da capacidade de continuar fabulando sonho e viagem, para bem longe de onde a ditadura desejava…
…além de colocar na pauta de toda uma nova geração de criadores uma liberdade especial de conjugar as coisas, com olhos tropicalista-antropofágicos, nordestino-baiano-carioca-paulista, se é que me entendem…
Ao longo dessas quatro décadas de existência a canção acumulou usos e funções – noto que nas interpretações recentes a identidade forró está bem mais acentuada, mas há lá dentro um jeito de samba, um apelo instrumental e improvisatório.
Às vezes penso que o percurso do próprio Gil seguiu o itinerário desse trem fantástico, e que ele agora está em pleno depois…
Vale lembrar que o expresso circula, instaura uma lógica que não é a do vai-e-vem. Ao circular conecta lugares, paisagens, fantasmas, sensações. Roda pra longe e desroda pra perto – refrão e expresso estão sempre reaparecendo. São mágicas que a música sabe fazer, o tal jogo de carretel de que trata a psicanálise (fort/da), os prazeres do sumiço e do reencontro.
De certa forma, a harmonia usada no início da canção (Dó, Sib, Fá…) inclina o vetor tonal na direção de Fá, quando na verdade se está em Dó, trazendo uma cor modal algo premonitória da natureza do trajeto e da metáfora – mas isso é logo eclipsado pela energia vibrante da dominante real, o Sol7, e sua sensível: sib – si – dó, esse link fica no ouvido.
Sensações multiformes: partir (e tudo que traz consigo), subir, estar no futuro, dançar, evaporar-se numa nuvem, ver Cristo… Encantamento e paradoxo dialogam. Já de saída um itinerário poético com o absurdo entre tempo e espaço: o sonho (trem) vai de Bonsucesso pra depois. Desautoriza a lógica das categorias. Dirige-se à estação final de uma estrada que não tem fim.
A base cinética de tudo é o violão de Gil- fino conhecedor dos segredos de acordes e texturas (digo, batidas), veja gravação de 1972 (ouça adiante!). Esse violão, com sua corrente de semicolcheias é o próprio trem-expresso, embora a ligação seja sutil e nem se preocupe em imitar nada. Estabelece, todavia, o nível mais rápido de pulsação e uma métrica dominante.
É sobre essa pulsação que vai surgindo um castelo fluido de acentos e gestos melódicos, de concretudes e fantasias, agarrando o ouvinte pela gola do espírito, e que quando vê está cantando junto, com a boca cheia de água e sal, menina, trilhos e nuvens…
O percurso circular, ou talvez elíptico, não evita polaridades, acomoda-as ao longo do trajeto.
Portanto, podemos dizer que a canção se instaura como acentos e tensões sobre a base de semicolcheias, mas o seu destino é bem outro, na direção da subversão desse estado rítmico, através de uma certa flutuação fora do tempo.
E se as análises têm um umbigo, diria que chegamos nele, pois esse estado de flutuação rítmica que leva à escassez temporária de tempos fortes seria a metáfora musical do encantamento, do flutuar sobre trilhos ausentes, evaporar-se nas nuvens.
E mais ainda: em termos de análise das durações e proporções, a maior parte desse trecho é construída com o valor das colcheias, só que deslocado. Enquanto o compasso inicial apresenta como ritmo a série de proporções (1+1+1+1+1+1+3…), com ênfase nas semicolcheias, o gesto delimitado pelo colchete registra uma série de ataques com ênfase na duração de colcheia (2+2+2+2+2+2+2…) – ou seja, o nome do Expresso. Pode? Aliás, quem disse que a análise não pode ser encantada também?
A flutuação por deslocamento desemboca em outro tipo de flutuação, agora por nota longa (duração de 8). Ao cantar “do tempo vai….dar” (no c. 9, final da segunda linha) Gil articula e acentua essa terminação. Por quê? Ora, ela coincide com a última semicolcheia do compasso, aquele mesmo lugar sempre marcado pelas batidas da zabumba, agente oficial da desestabilização do regime (métrico).
Portanto, é também de humor esse trem, pois a resolução da sonoridade longa vai sempre imitar o tempo forte que não é, fingindo uma normalidade falsa.
Isso tudo se transforma em alegria de retorno quando do surgimento do acento no primeiro tempo do penúltimo compasso.
A flutuação rebelde potencializa o retorno à normalidade métrica no penúltimo compasso, fechando a seção pela via daquele tradicional tropo nordestino, “ou menina do tempo vai”, e anuncia o recomeço de tudo: trem, partida, encantamento, subversão, sonho e raízes.
1 Agradeço a leitura prévia desse artigo por Tuzé de Abreu.
2 O início destaca os gestos ascendentes, mas a segunda parte investe numa longa descida fora do tempo que vai até o dó grave (dó3), para depois ir alçando voo até o clímax final; esse encaixe de descida e subida funciona como uma espécie de desenvolvimento e liquidação das ideias temáticas iniciais, preparando seu retorno.
3 Tomamos como referência a transcrição do Songbook de Almir Chediak, com algumas alterações para adequá-la à performance da gravação de 1972; vale a pena conferir a improvisação que Gil insere nesta execução – é um lado londrino/jazzístico, bem representativo da época.
4 Vemos, nessa viagem, que o gesto musical inicial reserva ao 2,2,2,2 proporções tais e quais, ou quase…
5 Nesta incursão analítica tratamos principalmente do processo rítmico e sua participação na metáfora musical da viagem; vários outros aspectos
*Paulo Costa Lima é compositor. Bacharel e Mestre (University of Illinois), Doutor (USP e UFBA). Professor de Composição e Análise – UFBA. Pesquisador-CNPq. Membro da Academia de Letras da Bahia.
Gilberto Gil(1972)
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