Galos, noites e quintais
Quando se tem quinze anos o mundo é muito maior, as tardes são intermináveis, as nossas certezas, sólido concreto. Ou pelo menos foi para mim. O tempo era lento e implacável, e acho que todos queríamos fazer logo dezoito anos, transar, dirigir um automóvel, ficar independente, trabalhar, ter o próprio dinheiro e dar o fora. Tudo isso ao mesmo tempo e para já. Não fiz nada disso, comecei a trabalhar no ano seguinte, tive de esperar mais um ano para transar, minha namorada engravidou e ficar independente significou ter uma família para criar, viver com pouco dinheiro, e nada de dar o fora, fomos viver em um quarto e cozinha nos fundos da casa de meu sogro. Ao menos comprei um carro velho, que dirigia para cima e para baixo até acabar a gasolina.
Havia um esboço de poesia, escrevia envergonhado nos cadernos de escola, em que quase nunca copiava as lições, algo que não compreendia totalmente. Ao ouvir as canções do Belchior, batia uma nostalgia louca, em quem nem viveu a vida ainda, mas se lembrava de coisas que ainda não havia acontecido.
É tragicômico, que hoje muitos anos depois, e bastante depois, tudo faça sentido mais nitidamente, embora não resolvi alguns nós górdios, pois estou atado à carroça da vida, e não sou nenhum Alexandre, para cortar tudo com a espada. Minha obsessão é desatá-los um a um. A poesia quase singela de Belchior traz elementos de outros poetas, há muito de João Cabral de Melo Neto nestes “galos, noites e quintais” (ouça adiante!), e até Antonio Machado, “Fazendo eu mesmo o meu caminho”, não sei se de propósito ou por sincronismo, sei que o pessoal da MPB dos anos setenta lia muita poesia, e havia poetas maravilhosos fazendo as letras das músicas. Hoje sei que não só os caminhos se fazem ao nosso andar, como se desfazem assim que passamos por eles. Não há retorno, não há a menor possibilidade de se voltar para trás, corremos o risco de como a esposa de Lot descobriu, nos tornarmos uma estátua de sal amargo de lágrimas dependuradas em galhos de árvores secas.
Sei que de alguma forma esta música significou o fim de minha adolescência, desisti da faculdade, desisti da música e penso que desisti um pouco de mim mesmo também. Engrenei em empregos muito pouco significativos, ordinários e medíocres. Trabalhei sempre para sobreviver, e à medida que envelheci, foi ficando mais difícil estar empregado, não é uma questão de dinheiro, houve momentos que até ganhei bastante, o bastante para ter casa própria, estudar a filha, ajudar minha companheira a se formar na faculdade. Nunca consegui conciliar trabalho com carreira, o que eu queria era escrever, o que fiz e muito, mas sempre como uma atividade paralela. Como se a poesia e a vida não pudessem se misturar, como se a poesia fosse uma amante que eu tinha, uma vida em paralelo com a realidade, e cada vez mais distante uma coisa da outra.
Tirando o bucolismo rural, pois cresci e ainda vivo em uma área suburbana da capital, havia “galos, noites e quintais”, e cana de açúcar no quintal imenso da casa de meu falecido avô (agora não me parece tão grande) e milho nos arrabaldes com chácaras e terrenos baldios. Corríamos como cães vadios, pulávamos cercas, tínhamos todo o espaço do mundo. Depois a solidão foi apertando o cerco, cada um cuidando de sua vida, cada qual com seu fardo e sua sina.
“Hoje eu trago e tenho” um “olhar lacrimoso”, e tem se ressignificado os versos da canção que me traz lembranças do passado, mas ainda está presente em minha vida, talvez na atualidade faça muito mais sentido até. A poesia tomou vulto em minha vida, agora a luta pela sobrevivência é que é a vida paralela, sou poeta o tempo todo, assaltado e sobressaltado pelo poema. Os versos me passam na frente dos olhos, como últimas lembranças de quem vai morrer. Ser triste não significa necessariamente ruim, bebo minha cerveja e meu vinho, conto as artes de meu neto aos amigos, ficar sozinho com uma criança em casa é impossível. A felicidade não existe e portanto a infelicidade também não. Corremos todos para a morte, mas quem está com pressa?
“Não sou feliz, mas não sou mudo
 Hoje eu canto muito mais”
Extraído de http://inventariodn.blogspot.com.br
Edison Bueno de Camargo
Belchior(1977)
X.X.X.X.X
Em 2006, o humorista Chico Anísio participou do programa de Rolando Boldrin, Sr. Brasil, onde contou causos e piadas e cantou a canção de Belchior.
Arquivo
- novembro 2025
 - setembro 2020
 - agosto 2020
 - julho 2020
 - junho 2020
 - maio 2020
 - abril 2020
 - março 2020
 - dezembro 2018
 - outubro 2018
 - setembro 2018
 - agosto 2018
 - julho 2018
 - junho 2018
 - maio 2018
 - abril 2018
 - março 2018
 - fevereiro 2018
 - janeiro 2018
 - dezembro 2017
 - novembro 2017
 - outubro 2017
 - setembro 2017
 - agosto 2017
 - julho 2017
 - junho 2017
 - maio 2017
 - abril 2017
 - março 2017
 - fevereiro 2017
 - janeiro 2017
 - dezembro 2016
 - novembro 2016
 - outubro 2016
 - setembro 2016
 - agosto 2016
 - julho 2016
 - junho 2016
 - maio 2016
 - abril 2016
 - março 2016
 - fevereiro 2016
 - janeiro 2016
 - dezembro 2015
 - novembro 2015
 - outubro 2015
 - setembro 2015
 - agosto 2015
 - julho 2015
 - junho 2015
 - maio 2015
 - abril 2015
 - março 2015
 - fevereiro 2015
 - janeiro 2015
 - dezembro 2014
 - novembro 2014
 - outubro 2014
 - setembro 2014
 

